
Uma sugestão de filme: “Minhas tardes com Margueritte”
Assisti-o recentemente, mais por uma sugestão da Folha de S. Paulo do que pelo trailer. Um filme francês com um enredo simples e cativante, centrado num encontro entre Chazes (Gérard Depardieu) e Margueritte (Gisèle Casadesus). O primeiro, um homem iletrado que vive de bicos, a segunda, uma cientista aposentada, amante da literatura, que vive num lar para idosos. Um encontro improvável e, por isso mesmo, memorável, que resulta numa história de superação pessoal tangida pelo amor e pela auto-aceitação.
O amor, aqui, não é o erótico, mas o amor de alma, que surge entre amigos. Aquele em que nos “despimos” para o outro, nos revelamos como realmente somos, e nem por isso somos julgados ou cobrados. A auto-aceitação de Chazes é um processo doloroso, como dolorosa é para ele a recuperação do letramento, abandonado na escola e seio do lar, ambientes muito truculentos para o menino. As imagens da infância se mesclam, reaparecem ao homem de meia-idade enquanto ouve os trechos das estórias lidas por Margueritte no banco da pracinha. As estórias parecem muito reais (La Peste, de Albert Camus), e por outras vezes os livros falam de coisas impossíveis. Com tudo isso, Chazes é transportado para um mundo que o desafia, para libertar-se dos esquemas aos quais estava acostumado a viver, como os jogos no bar com os amigos que, se lhe faziam companhia, também chamavam-no de “burro”.
O filme retrata essa estória linda de superação por meio do letramento que, como já dito, é um processo que tem seu preço. O título em francês La tête en friche remete a esse processo: friche quer dizer literalmente um terreno não cultivado, segundo o meu dicionário Hachette. En friche é uma expressão que remete a essa potencialidade de transformação, que já não é tão óbvia no adjetivo correlato em português (inculto, um empréstimo tardio que explica a existência dos dois particípios: culto x cultivado, sendo que o primeiro se limita ao sentido abstrato de cuidado intelectual). O verbo colere em latim tem significados concretos e abstratos, que vão de “cultivar”, passa por “cuidar”, e chega a “venerar” (daí o culto religioso). Os títulos do filme em outras línguas referem ao processo do encontro no lado visível. Esse processo tem um pequeno ponto de inflexão: a visita de Chazes a Margueritte no lar de idosos, em que o protagonista diz “pensar sobre essas coisas me dói” (“ça me fait mal”). Ora, não é a leitura que fazia mal, mas o processo de dar-se conta de si mesmo, do indivíduo com suas mazelas. Mas, apesar do incômodo, uma força maior impele Chazes a buscar a leitura: o seu carinho por Margueritte.
Todos nós que lemos e participamos ativamente, de uma forma ou outra, de nossa sociedade como cidadãos, devemos o que somos hoje a essa “andaimagem” (scaffolding) que fez com que nos interessássemos pelo conhecimento. Nosso interesse sempre é indireto e fomentado pelo afeto. Neste momento da história do Brasil, em que tanto se fala em educação, a discussão se centra nos objetivos capitalistas, de alimentar a demanda da indústria por mão-de-obra qualificada. Porém se esquece, como sempre, da educação para a vida, para os valores que se perdem neste tempo em que quase tudo é descartável, em que o afeto é trocado por brinquedos e a equação “tempo é dinheiro” já fez muitas vítimas. Tempo pode ser dinheiro, mas antes de tudo é vida, e isso merece todo respeito…
O Brasil é o país do futuro, segundo a batida frase de Teotônio Vilela, é um país em construção (en friche), em busca de si, e nossas micro-ações podem muito para refazer as rimas que nos definem enquanto pessoas e povo. Não sei se nos vemos como “povo” ou, antes, como classes diferentes vivendo no mesmo território… mas é certo que o resgate e a inclusão (não só econômica!) dos pobres certamente salvará os ricos. Eu não vou contar o final do filme, mas já dei uma dica… e espero que você possa vê-lo e, como eu, se emocionar com ele!
Nossa, deu muita vontade de ver “Minhas tardes com Margueritte”. Vou encara-lo como uma boa opcao para o fim de semana. Parabens pelo texto, sobretudo pela visão humanista da sociedade atual, normalmente tao maquineista.
Almir
Nossa, que resenha bacana, Aroldo. Também vou ver, certamente. Valeu demais pela dica! E continue nos brindando com sua sensibilidade. Abraço do amigo, Pablo. 🙂
Estou me preparando para passar para minha equipe de professores. Este filme nos faz refletir sobre o quanto a afetividade está ligada à aprendizagem. Este comentário é perfeito, porque consegue captar a essência humana do filme. Rosy