Discutimos a importância do ensino de gramática num post anterior, e como os métodos de ensino de língua materna têm progressivamente deixado de lado esse tópico em favor de outros (como o conhecimento dos gêneros textuais e da semântica, por exemplo). Nesta postagem dou continuidade (um tanto tardiamente) a essa discussão, observando a importância do estudo sistemático da gramática em diferentes níveis de ensino, como ferramenta de desenvolvimento do raciocínio.
No Brasil, sabemos que toda a educação tem privilegiado as ciências exatas. Isso é em parte consequência dos governos militares, que incorporaram a visão pragmática da educação no âmbito do capitalismo, como instrumento para treinamento de cidadãos com vistas a servirem como mão-de-obra para o mercado de trabalho. Ora, essa visão se acentua ainda mais agora, com um governo que tem claramente atacado as ciências humanas, julgando-as “inúteis” e, além disso, (não declaradamente, é claro) perigosas para a efetivação de seu projeto de poder, já que introduzem o pensamento crítico como elemento central na formação da pessoa humana. A gramática situa-se na convergência entre ciências exatas e humanas, e por isso continuam sendo esquecidas (apesar de não serem um alvo predileto, como o é a filosofia).
Estudos psicolinguísticos há muito apontaram o benefício de crianças estudarem música como auxílio para o desenvolvimento de habilidades matemáticas. Não é difícil entender a razão: a música é um sistema de linguagem (porém não de língua), uma vez que composto por elementos básicos (notas), uma série de operações que apresentam variantes (duração, ritmo, pausas) e regras para a combinação de tais elementos. Na língua (especialmente em seu aspecto gramatical) temos o mesmo: palavras, variantes e regras para seu ordenamento. A gramática é tão relevante para a consolidação do raciocínio quanto a matemática, porque ela repousa no aspecto lógico da linguagem.
Por que então a gramática vem sendo progressivamente colocada de escanteio no ensino brasileiro?
Primeiro, nosso ensino é por um lado extremamente centrado no aspecto normativo. O aspecto lógico não poderá ser trabalhado a partir de um estudo meramente normativo, pois este não está realmente interessado em explicar como a língua é, mas sim em impor uma determinada conduta linguística a seus falantes.
Segundo, nos últimos anos, o aspecto normativo cedeu lugar à visão discursiva (pelo menos em algumas escolas e métodos). Essa visão apregoa que todo texto só pode ser compreendido a partir de sua relação com outros textos, portanto situado em termos de contexto e cotexto. Nada mais justo, porém a gramática passou a ter um papel meramente figurativo, quando ela é a base para a construção do significado, sem o qual nenhum texto pode ser compreendido. Ou seja, a visão discursiva e a visão gramatical, que deveriam ser complementares, são apresentadas como antagônicas.
Terceiro, não há política pública que realmente valorize a gramática no ensino. Nas diretrizes do MEC, a gramática ocupou algum espaço, mas não há um conteúdo mínimo cobrado no ENEM. Isso se confronta com o que ocorre em outros países, em que gramática e raciocínio lógico são componentes cobrados para a entrada no ensino superior. Nos Estados Unidos, o SAT (Scholastic Aptitude Test) é um balizador, que deveria ser adaptado ao ENEM, com conhecimentos específicos sobre léxico e gramática acoplados à interpretação de texto.
Quarto, criou-se um círculo vicioso, por conta da precarização do ensino no país. A debandada de vocações das áreas de ensino faz com que os jovens que se dedicam ao curso de letras não estrjam dispostos a grandes sacrifícios. No entanto, dominar a gramática será uma tarefa dificultosa para a maioria desses estudantes, que não receberam uma base sobre a qual os professores universitários poderão trabalhar. Com isso, do desinteresse, não raro eles passam à rejeição dessa área de estudo, preferindo outras que lhes sejam mais “palatáveis”.
No meio a tudo isso, não incrivelmente a discussão sobre o ensino de gramática tem tomado força nas universidades. Porém essa discussão, se bem que relevante, será inócua se as bases do problema não forem atacadas.